domingo, maio 29, 2016

We

Five
I noticed him, for the first time, in the middle of a noisy and drunken darkness. And till today is where we are.

Four
We drank together thirty-six times. And, yet, we know nothing about each other.

Three
He kissed me. Twice.

Two
I never saw him again.

One
Somewhere, somehow, there must be light.

Zero
Or not.

quarta-feira, abril 27, 2016

Waiting

A cadeira faz um ruído esquisito quando me levanto para ir buscar mais cerveja na geladeira, um chiado estridente de metal desgastado se aliviando de um peso e um estalo de mola velha. Tem já uns cinco anos a cadeira. Ao longo do tempo perdeu três parafusos, que encontrei no chão e não sei de onde caíram. Qualquer que seja a estrutura que sustenta a cadeira, é evidente que está ruindo.

Cento e quarenta dias desde que tu partiste. Tuas cartas foram rareando semana após semana. Nunca sei ao certo se demoram ou se é minha ansiedade para ouvir de ti que amplifica todas as sensações de tempo.

Ainda não pintei as paredes, não consertei a pia quebrada do banheiro, não lixei os tacos, nem troquei as cortinas. Culpo a falta de dinheiro, mas sinto que são outros os motivos que me prendem nestas celas. Dia após dia as coisas vão se tornando mais velhas, tudo adquire um tom amarelado de espera e cansaço. As paredes, a pia, os tacos, as cortinas, meus cabelos, a pele fina dos meus dedos e o branco dos meus olhos.

Porque os dias não passam, fico relendo tuas cartas e teus devaneios. São muitos os contrastes entre o que dizes e o que pensas. Não sei se tu notas que consigo notar. Sei do teu desassossego e da tua da solidão, da falta de vontade de estar, da sensação de nunca fazer parte. Já faz muito tempo que compartilhamos das mesmas angústias neste "deserto de almas também desertas". É sintomático que ainda estejamos vagando errantes, quando parece tanto que somos, um do outro, o único refúgio.

A cerveja acaba cada vez mais rápido. Tudo ao meu redor vai se desintegrando como que para me dizer que eu não faço parte deste mundo, desta vida. Dentro de mim, só o que se renova é uma saudade estranha, uma urgência, um lamento pelo tempo que estamos perdendo, pelo tempo todo que já se perdeu.

A primeira imagem que tenho de ti é um quadro emoldurado na minha memória. Eu queria muito saber qual é a primeira imagem de mim de que tu te lembras. Mas somos silêncio, disfarce... A eterna possibilidade da possibilidade.

Sigo presa a essas engrenagens enferrujadas.

Porque os dias não passam, eu lamento o fato de que estejam passando.


Oi Va Voi - Waiting

terça-feira, março 29, 2016

Talvez

E as coisas todas que ficaram caladas me roubam o ar. Lamento o fato de não sabermos fluir, de nos despencarmos pela correnteza agarrados a pedaços frágeis de lucidez quando deveríamos ser só a loucura.

Fato é que nunca nos soubemos por inteiro. Talvez sejamos apenas reflexos um do outro, sonhos vivos, moldados pela pouca realidade que a gente espera encontrar nas coisas todas da vida. Talvez teu silêncio seja só uma imagem do meu medo. Talvez eu me esquive refletindo tua insegurança. Chego a pensar que nunca existimos, que somos apenas projeções de desejos incertos.

Por outro lado, tu me parece tão real e me imagino parecendo real pra ti e penso que talvez seja esse excesso de verdade a causa de estarmos tão distantes e tão próximos. Eu nunca vou saber. E pra ti, talvez, saber nem importe.

Talvez o grande amor seja apenas isso: um ou dois momentos, constantes efemeridades, dúvidas e entrelinhas pra uma vida toda. Minha consciência de que fomos feitos um pro outro e a resignação diante do nunca.

Talvez, talvez, talvez.


Lucia - Silence

sábado, março 12, 2016

Sobre poréns

Que tu já não me cabe mais e vice-versa. Que passaremos um pelo outro somente ao largo. Que as coisas que agora dizes jamais me refletiriam. Que os lugares por onde andei tu terias odiado. Que esse nosso tanto de vida desviou a trajetória.

Ou não.

Se tu te tornastes, de novo, alguma espécie de mentira. Ou se eu me tornei, enfim, uma verdade indiscutível. Se não são mais os mesmos teus motivos. Ou se eu seria capaz de compreender as tuas razões.

Nossa tortura diária. Nossas noites de insônia. A saudade.

Entre os quilos e cabelos que perdemos, as olheiras profundas que ganhamos, resta somente a dúvida.


Ella Fitzgerald & Louis Armstrong - Dream A Little Dream Of Me

quinta-feira, novembro 26, 2015

Esta noite

Será teu todo o sofrimento. Pela manhã, depois que ele for embora e restarem somente os copos vazios pela casa, os lençóis desalinhados sobre a cama, teu corpo cansado e teus dedos trêmulos tateando o criado-mudo em busca do maço de cigarros. Tu sabes que não deves dizer o tanto que há para ser dito, sabes que cada palavra que te escapar da boca antecipará noites infindáveis de vodka e blues e melancolia. E mesmo assim, tu dirás. Revelarás o que há de mais íntimo e sombrio. Todo teu drama escancarado na tentativa vã de fazer o outro sentir o que tu sentes. Tu sabes, ainda, que ele tem tudo desde sempre planejado, esta noite e a manhã seguinte e o próximo mês e todos os anos que irão se seguir. A presença constante de uma ausência pesada e dolorida, que ele te impõe já há tanto tempo, como um remédio amargo pra curar tua ilusão de que podes ser feliz. Ele te dirá qualquer coisa sobre o fluxo da vida e sobre a rotina e o desapego e tu, resignada, pedirás silêncio. Ele calará as desculpas, transparecendo um alívio que te doerá como uma punhalada de lâmina virgem, um alívio que tu tens certeza de que nunca irás sentir. Os olhos vazios dele te lembrarão de que nunca existiram falsas promessas e tu lamentarás a expectativa que criastes somente com suposições. No que não disserem ficará latente o desejo de que tudo fosse mais leve, de que o mundo fosse outro. Por fim, tu dormirás no peito dele e sonharás com os abismos aos quais nunca deveria ter te atirado.

quarta-feira, novembro 25, 2015

Thirteen

Era cedo ou tarde demais.

Uma terça-feira de um agosto que até hoje não terminou. Ele, eu, a janela, o sofá, taças cheias de um vinho caro e a incerteza do amanhã. Eu agia com a consciência de que cada minuto a mais era também um minuto a menos. E cada detalhe daquele dia é uma fotografia em um mural cheio de ausências e solidões.

Lembro que a desculpa era que bebêssemos juntos. Anos de distância, eu nem sabia ao certo quem iria encontrar. O coração acelerado enquanto ele se aproximava, suor frio, a adolescência toda de volta e, depois, ele me calando os batimentos cardíacos com um beijo... Ele me beijou logo que me viu, como se toda a lacuna fosse nada, como se pudéssemos recomeçar do exato momento em que paramos.

A janela. Uma paisagem noturna sem muito a oferecer e ele evitava me olhar nos olhos. Falamos pouco. O silêncio dizia tudo o que havíamos calado nos últimos anos. E não havia constrangimento naquele tanto de coisas que não éramos capazes de verbalizar. A sala como um bolha isolada no tempo e no espaço, um paradoxo em que os segundos duravam horas que passavam depressa demais.

O sofá e todos os meus protestos silenciados. Eu falava sobre a burocracia do trabalho enquanto ele me beijava a nuca, arrepiando todos os pelos do meu corpo. Declarações de amor em decibéis inaudíveis. Sabíamos que aquilo era tudo que teríamos. Uma noite, um reencontro que era também despedida, um algo maior latente que nunca iria se concretizar. Nossos corpos nus entrelaçados. Um momento.

E quando não foi mais possível estar, nos despedimos, com um abraço demorado. Eu antecipava uma saudade que doeria por meses. Ele, alívio. Ele também sabia o quanto aquilo tudo era efêmero e frágil. Mas ele queria que fosse assim.

E no apartamento de quatro cômodos ficaram as taças de vinho ainda pela metade, a garrafa quase cheia.

Era cedo ou tarde demais.


Carina Round - You And Me

sexta-feira, novembro 13, 2015

Mil

De novo o mesmo sonho. Dessa vez eu, vestido azul, parada na beira de um penhasco num fim de tarde cinza de outono, o vento forte balançando meus cabelos e assoviando nos meus ouvidos. Uma paisagem sombria, uma cidade se revelando ao longe, no meio de muita névoa, um céu esverdeado de ocaso. E a sua voz, que sussurrava: "pula". Eu queria muito pular, mas fiquei imóvel, hesitante... Acordei com o gato me mordiscando o nariz.

Eu nunca pulei. Eu sei que quis e que tudo me compelia. Mas em todas as vezes eu hesito e acordo antes de decidir.

São hoje mil dias. Curiosamente, foi o dia em que parei pra contar. Considerando os sinais que chegaram de ti nos últimos meses, suponho que esse número seja grande o suficiente pra te fazer sentir. E te odeio um pouco por isso.

É que a saudade já não doía mais como antes. Mantive a caixa de lembranças fechada por anos e a capacidade de calar os gritos. Abandonei o calendário. Deixei de supor as coisas todas que poderiam ser e me concentrei em viver as que estavam sendo.

Mas aí, tu voltaste, como sempre volta. Pra me roubar a tranquilidade, o foco e a vontade de te esquecer.

domingo, novembro 08, 2015

Fade in

Como em um filme, a gente vendo ao mesmo tempo o que cada um deles está fazendo, separados por um oceano de mal feitos e ausências. Ela querendo ligar... Não chega a pegar o telefone, ensaiar o número ou algo assim. Só fica ali, jogada no banco da varanda, acariciando as orelhas do cachorro e chorando. Um nó palpável na garganta, que dói há meses como uma infecção que antibiótico nenhum cura. A gente não vê o nó, mas a gente sabe que ele está lá, porque o diretor do filme é muito muito bom, embora o roteiro seja meio bosta já que é uma reunião de clichês intermináveis (tal qual a vida). Ele, dirigindo sua SUV de volta pra casa, nove da noite, sentindo um aperto no peito porque o peito dela dói. Eles são muito ligados. Ele acende um cigarro, fica fazendo bolinhas com a fumaça, lembrando de quando ela ria muito disso. Até aí não tem flashback, tá tudo implícito.

A fotografia é escura e fria. Cada um com suas respectivas solidões se perguntando o que é que o outro está fazendo, enquanto nós podemos ver que estão miseravelmente tristes e ficamos meio putos, tipo, dez minutos de filme e "liga pra ele, porra". Ela não vai ligar e ele tampouco. Esse é um longa, se aquiete.

Ela sai com as amigas, se diverte e se distrai e vai pra casa meio aliviada, meio triste, achando que amanhã será um dia melhor. Nunca é. Ele arranja uma namoradinha ruiva e desinteressante pra matar o tempo, enquanto o tempo vai matando ele aos poucos.

Então entram os flashbacks, quentes e cheios de cor. A gente fica sabendo por que se separaram. Uma sucessão de erros aqui e ali e muita mágoa. Ele ria enquanto brigavam e molhava o chão do banheiro. Ela colocava pouco sal na comida e era muito desastrada.

A essa altura a gente já sabe que os dois vão acabar juntos porque não faria sentido fazer um filme sobre duas pessoas separadas se não fosse pra eventualmente elas estarem juntas. Mas o impacto do reencontro depende do quão desesperadamente eles vão sofrer, a gente precisa ter aquela reação de "até que enfim". Não dá pra saber ao certo por que é que a gente concorda em ver tanta desgraça ao invés de pular direto pro final.

Aí que então já se foram uns cem minutos de película e nada de reconciliação. E no final, ignorando quase duas horas de sofrimento, ele se casa e ela se muda pro Japão. Cenas rápidas, se intercalando em cortes secos. Fade out. E eles nunca se reencontram.

A gente fica frustrado assistindo, mas com aquela sensação de que a realidade é isso aí mesmo, porque o tempo que cura tudo, cura também o amor eterno.

domingo, março 29, 2015

Dias

Final de junho, 1999. Você nunca soube, mas foi um dos meus planos, o pior deles, pra superar uma tragédia qualquer da minha vida. Foi sempre muito óbvio pra mim que nada de bom poderia vir disso. Mas eu segui.

Foram três dias de alguma coisa que pareceu melhor do que o que havia antes. Primeiro dia. Muita fumaça e barulho. Segundo dia. Um nó na garganta ou algo assim. Terceiro dia. Um orgulho besta. Depois, eu alinhando o vestido burocraticamente enquanto te esperava chegar. O que se seguiu eu não sei ao certo se foi realidade ou pesadelo. Bebi demais durante todos esses anos.

Já no quarto dia eram efêmeras as coisas todas. O cheiro de amaciante das roupas pingando no varal, um beijo de bom dia, o gosto de café amargo, um som de vinil, uma urgência de qualquer bobagem.

Veio julho e decidimos pela estrada. Acordamos atrasados em uma manhã de sábado, antes de partir. Nesse dia, você matou umas coisas dentro de mim, em silêncio. Eram coisas boas, sinto muita falta delas.

Eu tive sempre que ser forte pra não permitir que você me enterrasse debaixo de uma pilha de suposições e julgamentos precipitados. Não sei quantas de mim morreram no processo. Sempre achei que acabaria deixando de ser eu mesma. Nunca pensei que eu teria forças pra me cansar de não ser.

Devia ser ainda o décimo dia quando me dei conta de que já era tarde demais. Nós dois, juntos, não fomos feitos pra começos. Tinha sempre um final em cima da mesa de jantar, entre os lençóis da cama ou no porta-malas do carro. Ignorei todos, enquanto mais coisas iam morrendo dentro de mim.

Ainda assim, foram anos. Quinze ou mais deles. Acordar atrasada pra vida todos os dias, vestir uma roupa qualquer, ir pra rua. A rua sempre teve mais cara de lar do que a casa. Na rua, havia paz.

Dia após dia você escancarava meus vícios e destruía minhas virtudes. Em pouco mais de um mês, eu já não tinha mais essência. A vida girou rápido demais. Perdi amigos, sorrisos, saudades, memórias. Perdi minha calma e minha fé na doçura do mundo e dos outros. Ganhei umas tantas vergonhas, uns tantos medos e diversas mágoas.

O último dia foi o mais longo de todos. Fiquei horas sentada na varanda, esperando você chegar pra te dizer que aquele era o último dia. Ele, o último, foi leve. Mas sobrou muito pouco de mim depois de tanta fuga. Dormi por setenta e duas horas. Depois houve tédio, dor e saudade de alguma coisa que nunca existiu.

Finalmente, me veio o hoje.

Hoje eu comecei a me reaprender, a aprender a não ser só, depois de tanto tempo sozinha. Os novos dias têm me trazido alívios e euforias e alguma coisa a mais que eu acho que dá pra chamar de sede de vida. Guardo os remendos das muitas quedas, as cicatrizes dos desassossegos. Mas o amor, aos poucos, vai deixando de ser uma desculpa para não amar.

sexta-feira, fevereiro 20, 2015

Speed

Trilhas com cascatas, acampar na lagoa, macarrão ao pesto, uma dor, os punks (ah, os punks), campeonatos de som automotivo, os garotos do Independência mandando cartas de amor pras garotas do São Fernando, você não me sai da cabeça, um quadro sobre tipos de chá, paixões platônicas, delírios de estrada, duas crianças ranhentas me chamando de mãe (manhê), decoração de apartamento, Brigitte Bardot de peruca preta, os bares que não fecham nunca, paranoias, mais estrada, seu cheiro espalhado pela casa toda, um filme noir, Mariana me chamando pra ouvir bossa nova (mas nem amarrada), clientes ligando de toda parte do mundo, planos pra vinho na sexta, cinema no sábado, almoço com a família no domingo, mais passado, teatro de bonecos, Juca falhando miseravelmente em abrir um guarda-chuva, jogo de futebol no estádio, sinto falta das suas mãos passeando de leve pelas minhas costas, horas dirigindo bêbada e com sono pra levar as crianças pra mãe de verdade, Edu me dizendo que vai me fazer uma oferta que eu não poderei recusar, almoço no bandejão, mais e mais estrada, correspondências se extraviando infinitamente, um quadro sobre tipos de café (quero um sobre tipos de vinho), Thelonius Monk, madrugadas insones, balas de banana e não importa de que ângulo se olhe é sempre teu rosto emoldurado por uma nuvem de fumaça de incêndio, uma lista de mercado, o moço no vídeo dizendo que "assim não dá mais", Robert Smith tocando no som do carro, a vizinha reclamando da porta de vidro sem saber o quanto eu estou me lixando pra portas, pra vidros, pra ela, um monte de memórias, a mãe no telefone cobrando atenção, você, o varenik da avó, fios do seu cabelo no meu travesseiro, vender cabides na feirinha do Largo, cartas sinistras, boliche de quinta, buscar as crianças na casa dos tios, as curvas da estrada, você, reuniões pra votação de projetos, o vão do MASP, culto budista, praia com chuva, você, a gata ameaçando pular da janela, uma agenda cheia de pendências pra cumprir, essa dúvida, o âncora do jornal anunciando mais impostos (vou pra Cuba), ioga no parque, um jogo de poker, cada vez menos é tudo, a louça se acumulando na pia, esse medo, as tantas horas, essa vontade louca de me atirar perigosamente aos abismos que me cercam.

sábado, dezembro 13, 2014

Fragmentos de cadernetas V

Agora, mais do que tudo, me preocupa o fato de que meus cigarros estão acabando. Também me assustam a chuva e o vento, que já duram dois dias. As janelas aqui são frágeis, os vidros têm rachaduras e a água começa a entrar. Temo pelos gatos e pelos livros.

Além disso, é só você.

Há uma semana comecei a te escrever uma carta. São já umas trezentas linhas. Parte um guardanapo de bar, parte as margens do jornal de domingo, parte estas folhas amareladas da minha caderneta. Não posso passar a limpo porque muito vai se perder e eu não quero que nada se perca, quero que tu entendas do jeito que me veio. Entende, ainda, que há uma semana nada disso importava. Eu não sabia como te encontrar. Era uma carta escrita pra não ser entregue.

Me preocupa também que me atrapalhem a solidão. Dormi quase dezesseis horas pra poder acordar sozinha. E perdi mais umas três procurando a música ideal pra terminar de te escrever essas coisas que eu imaginava que jamais irias ler. É Tom Waits. Suponho que tenhas deduzido.

De tudo o que foi dito nesses rascunhos, o que eu preciso que tu compreendas é que o problema sempre foi minha incapacidade de confiar em mim mesma. Antes de ti, minha vida era uma sucessão de erros. Eram erros de contexto, de tema, tempo e lugar. E eram escolhas. Tu surgiste como um erro bruto e bonito, que eu não busquei, que era errado por absoluta impossibilidade de ser certo, que fazia valer a pena cada segundo de arrependimento. Mas que doía. Mais do que já havia doído qualquer outro erro.

No dia em que tu apareceste, a umas quatro ou cinco pessoas de distância, lembro que te julguei louco antes mesmo de notar a cor dos teus sapatos e o feitio das tuas mãos. Essa ideia, de que eras louco, foi só uma ideia por cerca de um mês, até que tua visita nessa casa de janelas frágeis me mostrasse que eu estava certa e que a tua loucura era vício instantâneo.

Foram dias, semanas talvez, até que deixou de ser possível fazer de conta que não. De algum modo as quatro ou cinco pessoas que nos distanciavam deixaram de existir e ficamos mais próximos do que é possível descrever ou imaginar. "Let's be weird together", tu disseste. E aí, meu medo e a gente, rindo, entre uma taça de vinho e outra, desejando que ele, o medo, fosse uma pessoa pra poder matar. Era incrível a quantidade de poréns que nos impediam.

Eu estava bêbada no dia em que disseste que ia embora. Senti que morreria pra impedir, senti alguma coisa, que na hora julguei ser minha alma, me escapando pelos dedos, pelos poros. Fiquei tonta, fiquei sóbria. E apenas me despedi sem lágrima e em silêncio.

E aí, alguns anos e trezentas linhas depois, me dizem que tu vais voltar, na hora mais e menos conveniente possível.

Eu queria muito estar bêbada agora. Não fico bêbada há anos. A fumaça quente e a brasa do cigarro terminam de queimar qualquer coisa dentro e fora de mim.

Me pergunto o que é que vem, já que essa coisa toda não seguiu exatamente a minha linha de raciocínio. Tremo de frio. Termino de escutar a mesma música pela quinquagésima vez. Rezo pra que este último cigarro dure por horas, pra que amanhã faça sol e pra te ver no olho mágico, em breve.

Enfim, de tudo o que foi dito nesses rascunhos, o que eu preciso que tu compreendas é que não há mais medo e que, apesar e por causa de tudo, eu não acho que seja tarde demais.


Tom Waits - Sea of Love

terça-feira, julho 29, 2014

Bullet with butterfly wings

Feeling the salty taste of my tears but I don't talk about it, because it sounds so dramatic and sad and I'm not a sad person. I'm happy. I'm so fucking happy that I think I'm the happiest person I've ever known in my entire life.

I'm always smiling, no matter what. Few people already saw me crying. Few. And, you can bet, if I'm crying, if I'm looking sad or angry, it's because something very wrong and bad and tragic happened. Otherwise, I'm a big smile. All the time.

And it isn't fake. Is true. I'm, indeed, a happy person. I see the glass half full. I believe in mankind. The humanity can overcome all my skeptical thoughts. Again and again and again. Thankfully.

But I don't look inside of me very often. Not because I hate myself or something like that. The thing is... I don't know where I'm going and I don't know where I've been. So, is kinda boring to look inside.

For not know, I regret. Oh, boy, I have so many regrets. I hate people telling me that they don't have regrets of anything. It's a Edith Piaf's cliche. Sounds beautiful, but isn't true. In the same way, I hate people telling me that they only have regrets of things they haven't done. Because, well, if you didn't do something, it's because you did something. You gave up. You hesitated. You runaway. So, stop fooling yourself. You have regrets. Everybody has.

I regret to be what I am, to be where I am. It's pretty much everything. I regret of all the choices I made that led me into this. Into nothing. Into black.

Yes, I intend to change. But I'm doing nothing. And I hate that. I hate that.

But, "despite of my rage I'm still just a rat in a cage".

quarta-feira, abril 10, 2013

Noites turvas

Que queria as luzes apagadas pra escrever e que escrevia sem olhar o papel e que depois a letra garrancho, as vírgulas voando, o cedilha cortado no lugar errado, os pontos finais como reticências. Que ela não entendia. E que o escuro era proposital e que não queria entender e que escrevia pra esquecer, pra tirar da memória, do corpo, da ponta dos dedos saindo um raio de energia cósmica. O tudo em que não devia pensar guardado em um rascunho ininteligível e a lateral da mão dela manchada de tinta azul e delírio.

Que não adiantava. Que a mente desenhava o rosto dele e as mãos dele e a voz dele e o perfume dele e que tudo era ele, pra onde quer que ela olhasse e que havia silêncio e que não havia expectativa nem medo nem lágrima.

Assim era. Ela perambulando pelos cômodos vazios, alisando os cabelos, sentido o cheiro de café e tédio, o barulho da água correndo, do apito do guarda, da ilusão e da preguiça enroscada em almofadas de veludo e cetim. A casa como um porão de filme de horror, as lembranças gritando, os discos empoeirados, os brinquedos de corda começando a funcionar sozinhos, o sangue escorrendo pelas paredes de madeira, os espelhos refletindo o que não existia.

Embora o tempo fosse outro e passasse e embora houvesse cor e brilho, ela buscando cicatrizes e só feridas abertas, unhas mastigadas, olheiras profundas. Ela em todos os lugares tentando substituir o insubstituível e queria risadas e escalava montanhas e tocava violão e bebia cervejas italianas e ouvia jazz e tudo o que nunca foi ele se tornava ele e ele era o vento e o tato e o esôfago queimando e o piano de Mingus.

E que a angústia vinha da espera, do não saber, do nada a ser feito. E que já estava resolvido e por isso não havia solução. E que ela sabia que tinha que seguir, que só havia um modo de seguir, que era sozinha, escrevendo no escuro, caminhando devagar pelos cômodos, revirando as caixas no porão, doendo em segredo. E sorrisos e ganchos e pestanas e ressacas e silêncio.

E que passaria. Que tudo passa. Que "é melhor viver do que ser feliz".

The Cure - A Forest

Caio

Olhe, não fique assim não, vai passar. Eu sei que dói. É horrível. Eu sei que parece que você não vai agüentar, mas agüenta. Sei que parece que vai explodir, mas não explode. Sei que dá vontade de abrir um zíper nas costas e sair do corpo porque dentro da gente, nesse momento, não é um bom lugar para se estar. Dor é assim mesmo, arde, depois passa. Que bom. Aliás, a vida é assim: arde, depois passa. Que pena. A gente acha que não vai agüentar, mas agüenta: as dores da vida. Pense assim: agora tá insuportável, agora você queria abrir o zíper, sair do corpo, encarnar numa samambaia, virar um paralelepípedo ou qualquer coisa inanimada, anestesiada, silenciosa. Mas agora já passou. Agora já é dez segundos depois da frase passada. Sua dor já é dez segundos menor do que duas linhas atrás. Você acha que não porque esperar a dor passar é como olhar um transatlântico no horizonte estando na praia. Ele parece parado, mas aí você desvia o olho, toma um picolé, lê uma revista, dá um pulo no mar e quando vai ver o barco já tá lá longe. A sua dor agora, essa fogueira na sua barriga, essa sensação de que pegaram sua traquéia e seu estômago e torceram como uma toalha molhada, isso tudo – é difícil de acreditar, eu sei – vai virar só uma memória, um pequeno ponto negro diluído num imenso mar de memórias. Levante-se daí, vá tomar um picolé, ler uma revista, dar um pulo no mar. Quando você for ver, passou. Agora não dá mesmo pra ser feliz. É impossível. Mas quem disse que a gente deve ser feliz sempre? Isso é bobagem. “É melhor viver do que ser feliz”. Porque pra viver de verdade a gente tem que quebrar a cara. Tem que tentar e não conseguir. Achar que vai dar e ver que não deu. Querer muito e não alcançar. Ter e perder. Tem que ter coragem de olhar no fundo dos olhos de alguém que a gente ama e dizer uma coisa terrível, mas que tem que ser dita. Tem que ter coragem de olhar no fundo dos olhos de alguém que a gente ama e ouvir uma coisa terrível, que tem que ser ouvida. A vida é incontornável. A gente perde, leva porrada, é passado pra trás, cai. Dói, ai, dói demaais. Mas passa. Está vendo essa dor que agora samba no seu peito de salto agulha? Você ainda vai olhá-la no fundo dos olhos e rir da cara dela. Juro que estou falando a verdade. Eu não minto. Vai passar.

terça-feira, março 19, 2013

Lá, aqui

Os olhos. Uma alegoria de verde ou azul ou mel. As mãos escondendo os olhos. O brilho por entre os dedos.

Sonho.

...

É dia claro.

Já cedo a loucura me sorri. Eu busco um verbo inconjugável pra dizer que não a quero por perto. É mentira. É verdade. Faltam crases, faltam vírgulas.

Mariana me conta sobre as fazendas e os pastos e as vacas e o leite e fala sobre descansar, sobre o pôr do sol mais lindo e o gramado verde cercando as casas, sobre necessidades, deveres. Eu não a escuto. Sua voz é mecânica, robotizada. Sua vida, idem.

Eduardo acende um cigarro e acena com a cabeça na direção de Mariana como que apontando sua pobreza de espírito. Aproveita minha distração e move o cavalo em um lance de seis casas. "Xeque". Mas eu tenho olhos pro tabuleiro, pro cigarro, pro telefone que não toca, pra Mariana e um outro ainda pra dizer, em silêncio, que não sou boba, ainda que eu seja.

...

Confundo memórias com vontades. Sei que dissemos pouco com palavras. Me pergunto se foi encanto ou fúria. Lamento meus impulsos, nossa pressa, tua perfeição.

...

Anoitece.

Edu me serve uma bebida quente. É verão e sinto frio. Não como nada há doze dias. Mariana penteia meus cabelos e canta em francês. Ele sorri e diz que precisa ir. Deixa meus remédios ao lado da cama e repete a prescrição duas vezes. Ela se levanta e me beija a testa de um jeito maternal. "Você está febril", ela diz, antes de pegar o casaco e a bolsa. Dou de ombros, desdenhando a não novidade. Eles saem.

Sozinha, no escuro, tateio ao redor buscando meus óculos. Todos os meus movimentos são impensados. Ouço o tique-taque do relógio. O tempo não passa em silêncio. Minhas mãos me gritam segundos. Elas sabem.

Adormeço.

...

E, então, você, de novo. Tua barba me fazendo cócegas. Você me dizendo o quanto gosta de Woody Allen, de queijo quente, de livro novo, de chuva, de veludo e seda, de ondulatória e do meu beijo.

Você não faz sentido, mas é bonito. E breve.

Eu querendo que você note o intangível, mas fazendo tudo errado. Céu de baunilha e os conselhos que eu nunca sigo. E algo como arrependimento, mas sem ser, toda vez que você vai embora. E você sempre vai.

...

Olhos negros, olhos negros. As entrelinhas que eu não leio. As bobagens que você não conhece. Amnésias e desvios. A outra moça. Os mortos todos. O som irritante do despertador. Distância. Apego. Saudade.

Pesadelo.


Nouvelle Vague - I Melt With You

domingo, fevereiro 17, 2013

Cento e oitenta

Perceber que os motivos de antes são os mesmos de agora, que eu sempre te deixei guardado em uma caixa, que colei a etiqueta "lembranças" na caixa e que nunca abri a caixa, por medo da melancolia.

Pensar no quanto me escondi, nas coisas que não te contei, no tanto que tu não soube, na intensidade que nunca te permiti conhecer. E na noção dos fatos que agora te falta por opção.

Perceber, contudo, que saudade era rompante que passava. E ver, dessa vez, a saudade em todos os cantos, em todas as horas. Sentir a saudade doendo nas juntas dos dedos de minha mão. Mentir a saudade, bêbada, como se ela fosse inédita.

Pensar no tamanho da dor que doía latente e nos gritos que eu tinha capacidade pra calar.

As capacidades que perdi.
A mentira que foi, que é, esse me afastar de ti.
O tudo tão diferente e tão igual.

Perceber o tempo passando, contar os dias, riscar os dias no calendário.
Cento e oitenta.
Que parecem dois.
E que parecem dez mil.

Imaginar que haverá outros cento e oitenta e outros mais. Cento e oitenta vezes. Porque eu não posso. Porque tu não quer. Porque já é tarde demais.

No fim, resumir tudo a um número. Grande o suficiente pra que eu o note, mas pequeno demais pra te fazer sentir.

segunda-feira, janeiro 07, 2013

2013

Caio pedindo pra que fosse doce.
Eu não.
Que seja amargo, ácido, que tenha gosto nenhum qualquer.
Ou que seja doce, como quis Caio.
Não importa.
Desde que seja, seja como for.
Desde que não seja você.
Não-você é o meu desejo, minha meta, meu castigo.
Prometo-me a não espera, o não olhar a caixa de correio a cada cinco minutos, o não buscar meus traços pálidos nas tuas linhas sobre o clima, astrologia ou festas de fim de ano.
Que seja vil.
Que seja efêmero e egoísta como você supôs que fosse meu sentimento de ontem.
Que seja um tanto bonito, mas de um jeito não você.
Disfarço tédio com riso. Mas é tédio, não dor. E tédio é lindo. Esse tanto a ser feito e a gente assumindo a preguiça.
Eu.
Que seja real.
O barulho da chuva, fantasma de vento, tiroteio, motor de carro lá embaixo.
Fosse milagre esse negócio de resolução, de folhinha sendo descartada do calendário.
Mas não, eu sei.
Ainda um pouco de ti em tudo, um pouco de tudo em ti.
O ruído.
Só que menos, mais baixo.
Cada dia, hora, minuto.
Que seja rápido.
Ou que seja lento.
Desde que seja, seja como for.

sábado, novembro 24, 2012

Let me be your Clementine

Na primeira noite, o vento vinha de longe e espalhava as cinzas dos cigarros no cinzeiro pela casa toda. Eu bebia vinho, ouvia jazz e pensava em você.

Olhei para o céu e havia a lua. Ela apareceu por entre as nuvens negras movimentadas pelo mesmo vento que espalhava as cinzas. Então, súbita, a lembrança dos teus passos distantes, do barulho dos teus passos, que eu podia ouvir em meio a todo o trânsito, toda a gente, todo o horror e toda a pressa. Quando olhei de novo, a lua já não estava mais. Era tudo escuro e frio.

Na segunda noite, não havia vento, só lembrança. Dos teus passos, o meu medo, o teu beijo. Daí em diante, é como se eu houvesse flutuado ao teu lado por uma paisagem de nada. Lembrei apenas da janela, do sofá, das tuas mãos percorrendo meu corpo como se eu fosse feita de ar. Lembrei da tua voz, do teu sorriso, da minha teimosia, do teu desapego, de cada minuto que passou depressa demais. Demais.

Não me ficou quase nada e, ainda assim, tanto de ti.

A terceira noite, contrariando toda a lógica, foi a mais difícil. A música que vinha do bar em frente era um tango triste e aqui dentro só havia silêncio e escuridão. Lembrei da despedida, da realidade me agredindo de um jeito delicado e, ao mesmo tempo brutal. Lembro até que ri. Tudo é leve quando existe esperança.

Deitada no tapete da sala, o teto branco. Lamentei não ter percebido que havia adeus no teu último beijo, no teu último abraço. E me veio, então, a lembrança do teu cheiro, a mais cruel, a que mais perturba. Eu queria poder explicar o teu cheiro, a única coisa mais inexplicável do que todo o resto em ti.

E eu queria poder esquecer.

Não, não há tragédia. É só que dói, de um jeito que às vezes parece insuportável. É uma dor física. No peito, na garganta, nas pernas. É uma vontade de dormir, de viver nos sonhos. É, ao mesmo tempo, uma espécie de raiva... Por ter me permitido doer, pelo passado, por, simplesmente, falar sobre a dor. Me odeio tanto quanto ou mais do que sou capaz de odiar qualquer coisa só por estar aqui, falando sobre a dor. Rio de mim mesma, com os olhos marejados. Tu sabes o quanto detesto melodramas.

Vai passar. Comecei a enterrar estas lembranças todas nas primeiras horas que se seguiram ao que eu acho que posso chamar de fim. Sei bem que nada nunca teve início. Mas são só palavras.

Naquela primeira noite, a lua não apareceu mais. E foi assim também nas três noites que se seguiram... Ela agora há de estar lá, aí, aqui. A verdade é que não olhei mais para o céu. Hoje, o vento está, de novo, espalhando as cinzas dos cigarros no cinzeiro pela casa toda. Eu continuo bebendo vinho, ouvindo jazz e pensando em você.

Mas tudo vai se apagando, lentamente.

quinta-feira, novembro 01, 2012

Diferenças

Começou quando discordamos sobre um quadro qualquer de Dali.

Um mês antes do fim. Caminhávamos de mãos dadas pelos corredores do museu. Ele fazia aspas no ar, com os dedos, quando falava a palavra arte. E era Dali, ali, diante de nós. E foi surreal, de um jeito ruim... Mas eu perdoei.

Eram três ou quatro meses e concordávamos em quase todas as coisas. Discordávamos rara e elegantemente. Nenhuma discussão era inflamada. Acabava tudo, sempre, em nada, em vinho, em riso, em paz.

Até a tarde de Dali.

Três semanas antes do fim era um filme de Almodóvar que ele nunca havia visto. Era cinema sobre o coma e ele dormiu na metade. Depois, sem que eu pedisse, justificou. Chamou Almodóvar de cineasta esquisito. Aspas no ar pra cineasta e me vi à beira de um ataque de nervos.

Marco dizendo que o amor é a coisa mais triste do mundo quando acaba, como na canção de Jobim... E eu perdoei.

Duas semanas antes do fim, no bar, entre amigos, Stormy Weather tocando no fim da noite, ele confessou que não gostava de jazz. Falou algo sobre intelectuais, fez de novo as tais aspas no ar. Eu já não ouvia nada além da voz de Billie Holiday.

"Life is bare, gloom and misery everywhere."

Mas ele tinha os olhos mais azuis do mundo e mãos de pianista e planos tão parecidos com os meus, de estrada e sossego e velhice... Então, de novo, eu perdoei.

Uma semana antes do fim ele fez críticas a David Foster Wallace, disse algo sobre não haver sentido e lunático, suicida, chato. As aspas imaginárias no escritor.

Antes que eu pudesse percebê-lo como homem hediondo, calou meus protestos com um beijo seco... E mais uma vez, meu perdão.

"He was, after all, just a little boy."

Aí, ontem, o fim. Ele me dizendo que gostava de sorvete de milho e que passas ao rum era um sabor horroroso. Com meu indicador sobre os lábios, dei-lhe as costas e saí. Passas ao rum. Sabor com aspas. Imperdoável.

terça-feira, setembro 04, 2012

Stranger

Memorizei todas as tuas faces nulas de significados. De certa forma, tudo em ti se projeta em mim como se teus olhos, ou tuas mãos, ou teus pensamentos fossem espelhos planos me refletindo. Ainda assim, não sou capaz de reconhecer teus momentos, de separar teu ódio do teu apego ou da tua indiferença.

Analiso-te com um distanciamento quase acadêmico. E tu não percebes que me importo. Divago muito. Concluo pouco.

Tu és, sim, incógnita. Me fica, contudo, a sensação de que estás sofrendo de um vazio crônico que sequer te permite mistérios.

Já aprendi a identificar teus espaços e lacunas. Sei que o muito que havia em ti se perdeu em trajetórias não planejadas e cálculos mal feitos e que o melhor ainda está guardado em algum canto obscuro de tua alma solitária.

Eu vejo o sofrimento que os outros não vêm, o torpor que tu disfarças com efusividade e riso. Sei que o pouco caso que fazes da vida, e do amor, é fuga. E sei de tua beleza. Infinita.

Mas é tudo o que sei. E tudo se resume em não saber quem tu és.

quinta-feira, julho 19, 2012

Vírgulas

Tuas palavras penetrando minha pele como uma lâmina e o nada que te digo sobre a dor, sobre os vidros quebrados, as reclamações dos moradores do prédio em frente e o vinil antigo girando na vitrola.

Tu não vês, mas eu me esforço. Pra não parecer bêbada, pra não parecer louca, pra não te deixar perceber a dor, o medo, a urgência, o tédio em que me colocam todas essas pessoas pálidas e roucas e cegas e burras que nos rodeiam em todas as noites e em todas as manhãs e tardes e sonhos.

Sei que compreendes. Disfarças tua cumplicidade em ironia. Teu olhar, nestes instantes tristes e doces, é de infinito. O ar tu deixas rarefeito, quando involuntariamente nos lança quilômetros acima de toda a normalidade.

E tudo ao redor desaparece. E não se pode ouvir mais nada além do silêncio gritando obscenidades. E eu tenho vontade de chorar e de fugir, ou de te segurar pelo braço e te pedir silêncio e te dar um soco ou um beijo ou cravar uma faca no teu coração de pedra, argila, isopor.

O tempo que passa rápido demais e nunca acaba.

Teus olhos azuis, tuas olheiras fundas, tua boca, o movimento da tua boca, tuas mãos trêmulas, teus dedos tortos, teus cabelos claros e desalinhados, teus segredos guardados no cofre mais inviolável de todos os universos conhecidos, tua fome, teu ódio, teus sons.

Daqui, minha desobediência e meus acasos. A incompletude em mim que te incomoda e a realidade confusa e detestável que me prende como engrenagem enferrujada.

É difícil sobreviver a tantos detalhes e possibilidades, a esse hiato de coisas tão intensas e perfeitas diante de nossas mãos voluntariamente atadas...

Compartilhamos o desassossego, a solidão, a falta de vontade de estar, a sensação de nunca fazer parte. Sei também do teu impulso e do teu afeto. E tu sabes que minhas atenções inesperadas vão além da simples loucura.

Tenho pouco que me prenda, já te disse. Moscou é logo ali. Lá tem internet, vodka, poesia e céu vermelho. Diz que vem comigo e vou fazer as malas.

terça-feira, maio 01, 2012

Quando

Tremo de frio e de medo e de dúvida. Olho para os lados em uma busca desesperada (e vã, bem sei) de algo que eu possa controlar. Encontro tua imagem borrada e teu silêncio me dizendo que é pra dentro que devo olhar. Tu pensas que há controle pra essa coisa toda. Mas já não há.

Não que tenhamos ido longe demais... Permanecemos sentados à beira do abismo, com medo de pular. Nunca nos permitimos um deslize. Nos observamos de longe e dizemos, só nas entrelinhas, o que não devia, mas tem que ser dito, porque não é possível evitar. Eu sei, tu sabes, mas insistimos em fazer de conta que não, que nunca. E daí o desespero, e o frio e o medo e a dúvida.

Não há controle porque será eterno até que nos permitamos descobrir se é ou não efêmero. Nos perguntamos sobre o como, com todas essas dores se antecipando por trás da interrogação, mas, no fundo, o que nos interessa mesmo é o quando.

domingo, abril 22, 2012

Strangers X Allies

Elevador. Nenhum bom dia, nem um sorriso. Os dois. Vinte e quatro andares e uma hora pra passar por cada um. Não constrange porque são invisíveis um pro outro. Ela aqui, ele longe.

Outra dimensão e a espera. Deixar que o não dito se subentenda... A verdade é que temos nos esforçado para que tudo fique subentendido, ainda que a verdade seja muito, muito clara.

Mundos diferentes. Ela pesca em rios de lava, ele esquenta a comida de ontem no microondas. Ela viaja em dirigíveis, ele permanece no mesmo lugar. Ela diz o óbivo através de referências, ele nada diz.

O que imaginamos. Nossos olhos sem cor diante da possibilidade da possibilidade. Tuas mãos trêmulas segurando meu rosto. Um suspiro. A loucura nos teus, nos meus, lábios. Nossos corpos, um só corpo. Tudo em você despertando em mim os clichês mais detestáveis. E vice-versa.

As coisas que ele não diz, as que ela não faz. Um fim difícil de aceitar. Intempéries que eles tentam ignorar pelo isolamento, mas que não podem ser ignoradas.

Neologismos para amenizar o óbvio, o impacto do inevitável. Esse tanto de coisas que deixamos implícitas em um "adeus" ou "boa noite". E a noite mal começou.

Silêncio. Distância. E só.

Silêncio. Tão longe, tão perto. Tão mais.

quarta-feira, abril 18, 2012

Cycling

Você. Preciso parar de fumar. Essa falta de ar, meu coração acelerado e o moço outro dia me dizendo que isso tudo é perigoso. Uma subida, oh Lord. Você de novo. A irmã sem juízo. A mãe preocupada. Você, rindo da minha incapacidade. Você, fazendo que sim com a cabeça. Você, apertando os lábios como quem diz "é foda mesmo". Força. Vou parar de fumar. Ah, o vento gelado. Malditos carros. Buzina? Buzina? Morra você. Não, não você. Sorrindo, a tonta. Uma cerveja gelada me esperando na geladeira a sete quilômetros, um porteiro lento e cinco lances de escada de distância. E mais você. O sabão em pó que eu não comprei. Você. Meus prazos de amanhã. Você. Segunda-feira na praia. Você. It's kinda creepy. Seus olhos. Seus dedos tortos. Seus sapatos pretos sempre bem engraxados. Sinal fechado e o tiozinho careca cantando em voz alta. Sede, suor, cansaço. Seus atos falhos. O cheiro do seu perfume. O som da sua risada. Imelda May no fone de ouvido. Você. Você. Você. Você. Você...

sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Súbito

Harry Callahan apontando uma arma para a minha cabeça e dizendo "Go ahead, make my day". Eu me rendo.

Uma maquininha de apagar memórias e nada de morcego entrando pela janela, nada de taça de morangos com creme e minha irmã imitando Amelie, nenhuma despedida chorosa na porta do elevador, nenhum penteado novo, sem notícias da morte de Jeremias ou dos filhotes de Domitilla, não mais o fuso horário inconveniente, nem o encontro marcado pra daqui poucas horas, nada de teatro com os dedos dos pés e refeições no chão da sala e nada de desilusão ou desencanto.

A pior e a melhor parte. Só silêncio. E vinho barato.

Ela liga lá do outro lado do mundo em plena tarde de sexta-feira e eu sorrio ao ver o número estranho e longo no identificador de chamadas. Aí que nada mudou a não ser pra pior. O telefone de novo no gancho e uma lágrima estúpida. Maldigo a vida, o cheiro do ralo da cozinha e a cor cinza amarelada do meu sofá.

Fora daqui tem futuro, tem dia amanhecendo com jazz no despertador, tem a barba amarela daquele moço cheirando a cigarro. Fora daqui tem pouca realidade e uma estrada longa entre o agora ou nunca, sem pressão.

Aqui é só muito sono, muitos sonhos. E essa solidão de minutos marcados que eu às vezes desejo que dure pra sempre.

domingo, fevereiro 12, 2012

Dimensões

Encantador o silêncio. A tua, a minha, a nossa voz calando em dois dedos simetricamente alinhados sobre meus lábios. O ruído dos carros em alta velocidade na madrugada lá fora. Dá pra ouvir o som da lua, tu dizes, e esticas teu braço nu pra alcançar o maço de cigarros sobre a banqueta azul que serve de criado-mudo.

Do lado de cá um ruído incessante de marteladas e os miados do gato me tirando a concentração.

De novo o Jardim das Delícias, de Bosch, e eu, timidamente, confessando que preciso de mais metáforas para estas tuas tragadas profundas. Tu notas que é tarde e que as putas e viciados da rua já não estão mais ali. Depois me oferece o cigarro e ri da nossa mania de dividir todas as coisas.

O tempo, aqui, é só meu. Tenho música, cerveja e solidão. A realidade, mais uma vez, dorme.

A janela. É piegas, mas a verdade é que teu perfil está emoldurado pelo luar de um modo que só me permite ver tua sombra e a brasa de teu segundo cigarro queimando na escuridão fajuta. Penso na foto que essa imagem daria com uma daquelas câmeras dos rapazes do sul. Lembro da nossa última viagem sem rumo. Um sorriso.

Para amanhã, mil planos. E só.

É efêmero. A mariposa rodeando a lâmpada já acesa e teu olhar perdido no horizonte de concreto e fotografia. Algumas horas velozes e não teremos mais cigarros, nem silêncio, nem luar. Aí tu me observas, pensativo, como quem dá mais importância às lembranças do que aos momentos, eu te mato, secreta e cruelmente, te cobro o silêncio que há minutos atrás teus dedos me impuseram, apago novamente a luz e adormeço.

Aqui, um breu que brilha, a música no volume mais alto possível, minhas veias abertas jorrando sangue... E um pesar pelo amanhã de ontem, que se tornou hoje rápido demais.

quinta-feira, novembro 17, 2011

Isso de esperar e o tempo que não passa

Entre um telefonema e outro, pergunto às paredes quem é que vai me salvar. Sete dívidas perdoadas, verba para o lar de idosos, remédios para câncer de garganta e de ossos. E você pode abrir sua boate, seu salão de beleza, seu mercadinho, seu aviário. Aqui é só vermelho, pele enrugada, voz que não sai, pouco cálcio. Uma cerveja, um vidro de esmalte, uma lata de atum e o gato.

Missa à distância. Caminho, de joelhos, tentando juntar os pedaços da vida que já foi inteira. Pouca areia e muita brita, muito sangue. Quando se medem os quilômetros em dias... São três dias daqui até lá, sem paradas para as balas de banana. Quatro dias, se houver engarrafamento. Dois e meio se houver encanto no pedal do acelerador. O tédio, os meninos que vendem casquinhas, as placas que a gente não pode ler. Uma coisa de cada vez.

Lembrança de cheiro, de gosto, de dor. Inexplicável. As árvores de natal, o bolo da avó, a falta de ar. A lenha queimando, os pedaços de papel de seda espalhados na cama, nossos braços nus abertos na neve. Nicotina na tua barba, nicotina na tua barba, nicotina na tua barba. Como um cisco no meu olho que eu te peço pra tirar, mas tu não vês.

Esse frio incomum e o teu silêncio. A cerveja que acabou e Edith Piaf, rouca, me dizendo que não se arrepende de nada. O sol virando lua pela janela minúscula desse lugar que eu chamo de casa. Uma imensa ladeira, o parque, o cemitério. Noite outra vez e ainda é ontem... oito ou dez anos atrás. Ainda tuas mãos em meus cabelos, tua voz macia me pedindo calma. Ainda meu erro e teus passos se afastando.

Então os sonhos. As moças, tolas, procurando significados. Elas não sabem que o mundo está cheio de referências. Eu consigo ligar tantos pontos. Não há nada sobrenatural ou misterioso. São só impressões, memórias, desejos.

E são ciclos, tu bem sabes. Depois, de novo, a dúvida, a distância, a lembrança, o frio e o silêncio. E os sonhos.

quarta-feira, agosto 31, 2011

Caio

1
"E me pergunto se, quem sabe um dia, na hora certa, nosso encontro pode acontecer inteiro."
...
"De repente a gente se encontra numa esquina, num outro planeta, no meio duma festa ou duma fossa, a gente se encontra, tenho certeza."
...
"Penso às vezes que quando estiver pronto, um dia qualquer, um dia igual hoje, vou encontrar você claro e calmo sentado no Bar, à minha espera."
...
"Mas se a saudade bater, escreva uma carta que pode ser cheia de queixas, ou cheia de sol. Será bem vinda."

2
"Quando alguém, no plano real, toma forma, a gente imediatamente projeta toda aquela emoção presa na garganta do sonho. E fatalmente se fode."
...
"Fiquei ali parado, procurando alguma coisa que não estava nem esteve ou estaria jamais ali."
...
"Podia ter dado certo entre a gente, ou não. Eu nem sei o que é dar certo."
...
"Ele disse: Eu não vou me esquecer de você. Ela disse: Nem eu."

3
"Quero domingos de manhã. Quero cama desarrumada, lençol, café e travesseiro. Quero seu beijo. Quero seu cheiro. Quero aquele olhar que não cansa, o desejo que escorre pela boca e o minuto no segundo seguinte: nada é muito quando é demais."
...
"Eu vou gostando, eu vou cuidando, eu vou desculpando, eu vou superando, eu vou compreendendo, eu vou relevando, eu vou… E continuo indo, assim, desse jeito."
...
"Boas e bobas, são as coisas que penso quando penso em você."
...
"Eu ando tomando o rumo certo agora, me deseje sorte."

4
"Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada."

So what?

De repente um tempo que eu não tenho. E penso. Sinto na garganta algo que parece ser um coração prestes a escapar pela boca e me lembro do quanto odeio clichês e do quanto eles são reais, sometimes.

Minimizo.

É apenas um sentimento.

Não, são vários, centenas deles. Todos esses vitrais coloridos, todas essas paisagens nubladas. Minhas tantas saudades, minha vontade, meu amor, meu ódio.

Silêncio.

Duas madrugadas em claro e nesta noite o nada. Eu perco oportunidades demais. Arrependo-me. Entre tantos motivos que tenho pra me arrepender, escolho o mais banal. De fato, é o motivo que me escolhe. E me culpa, inocente que sou, por este silêncio de hoje, de agora.

É quase mentira. Tragédias que me fazem rir e lamentar. Enquanto isso, a chaleira apitando, rádio antiga sintonizada, meus pés descalços, doentes de tanto andar em círculos, se arrastando pelo piso frio da cela. Nenhum contato com o que há do lado de lá dessas paredes finas, desses muros altos, dessas distâncias invencíveis.

Espero. O guarda anuncia visitas que eu não quero receber. Não agora, não hoje. Meus desejos calados pela ausência de quem não pode vir. The last one... The last one?

Tenho três problemas que remédio nenhum trata. Ouço o tempo todo esse ruído, tilintar de taças. Algumas vezes elas se quebram. E a minha memória vai se perdendo um pouco em cada brinde. Vivo, pois, de surpresas. Para além do que parece ser bom, pesadelos tomam forma e eu queria poder explicar como tudo isso funciona.

Na vida burocrática dos dias ditos úteis há pouco ou quase nada. O mate, um sorriso, saltos altos, o dinheiro pro café que eu não bebo, as compras no supermercado. Na falta de disfarces decentes, me camuflo e deixo de fazer sentido.

Há sempre a noite, contudo. E a música.

Penso no moço da eletricidade e do desconcerto, nos dois ou três meses que já se passaram, no que eu quero muito, mas não preciso.

E aí, dez minutos atrás; planos efêmeros e todas as outras coisas que eu não consigo enxergar nesses momentos depressivos e sensatos.

Depois as broncas carinhosas no gato roedor de fios, o único abraço, meu próximo carro, a noite que nunca acabou, a voz de Brian Setzer, "your kiss of fire", a viagem pra Paris... Mesmo as contas pra pagar, o concerto do chuveiro, a louça suja na pia, os domingos tediosos.

Poucas coisas me fariam abdicar da minha sensatez. Poucas coisas.

Ordeno meus devaneios. Primeiro, apenas utopia. Por último, sensação de eternidade. Entre isso e aquilo, essa semi-realidade, nada normal, que me tira, cada vez mais e cada vez menos, o sono e a paz. Não posso me prender a tantas coisas. Faltam cordas, nós demais.

Eu oscilo. Ora delírio. Ora ilusão. Ora verdade. É fogo cruzado. Por não saber pra que lado correr, permaneço imóvel. Fantasio, sempre. Mas nada afasta a realidade das coisas, os dias frios e cinzas, essa inacreditável solidão...

terça-feira, agosto 30, 2011

Eternidade

É previsível, pra dizer o mínimo. Mas vai além disso. É tudo aleatório, normal e anormal ao mesmo tempo, o tempo todo.

Meu medo constante e esses impulsos de loucura. Meu mau humor e meu sorriso infinito. Momentos em que imploro por silêncio e solidão e a paz que só existe no seu abraço. Minhas súplicas ignoradas e meus desejos sempre atendidos. As coisas todas que você não entende e não tenta entender. A complicação que você deduz. Sua chatice infinita, sua falta de bom senso. Minha aprovação muda à sua sensatez quase burocrática.

De outro lado, sua sede por explicações. Sua maldade quase ingênua. Não, não quase, ingênua sim. O modo como você se irrita ou se emociona ou se... Sua exposição infinita de defeitos e qualidades. Meio tosco, meio erudito. O som das cordas que você dedilha e, incrível, consegue me irritar. Suas explanações, meus bocejos, meus aplausos. Os pontos finais que você não coloca. Seu cheiro, tão bom, de nada. Seus sonhos sem limites. O jeito como você prefere as coisas que quer e ignora as que precisa. Sua aversão a conselhos.

É essa falta de lógica que me encanta, embora às vezes me tire do sério. É sua pouca culpa, seu hálito sempre fresco, sua coragem, sua consciência pesada, suas manhãs de ressaca, sua covardia.

E, também, esse cotidiano chato e encantador. Minhas vezes de lavar a louça. Suas meias espalhadas pela casa. Nossos treinos de dança. A sua espera, a minha ausência. Nossos planos, nossas dores, nossos vínculos.

O que fica, de tudo, é bom de um jeito que eu não sei explicar. E é eterno, embora eternidade não exista.

segunda-feira, agosto 29, 2011

Ilusão

Apenas imagino... Mãos trêmulas e coração acelerado das nove xícaras de café. Bonita a voz dele ao telefone. Aguardo o tal técnico resolver o problema com a minha internet e divago. Ele define um destino e não me conta qual é. A lua está bonita; lamento não ter janelas. Me pede pra vestir vermelho e pra levar um chapéu. O menino da internet não sabe mexer com fios; eu ajudo, pensando no absurdo da situação. A despedida é em uma língua qualquer que eu não entendo. A mãe liga e diz que Domitila foi operada e passa bem; ouço Domtila latindo; sinto saudades. Eu sei tanto... e quase nada sobre ele. O moço da telefônica sai, prometendo, sem certeza, só mais meia hora de vazio e silêncio. Nós temos pouco tempo e muito do pouco que temos nos roubam. Abro uma cerveja. O mundo está cheio de ladrões. Acendo um cigarro. Espera longa e ele chega, todo de preto, sorrindo de um jeito que é só dele. Minha consciência pesa toneladas de exercícios físicos não sendo feitos. Caminhamos de mãos dadas, sob o sol. Prometo tudo pra próxima segunda-feira e pretendo cumprir. Não há rumo, ele confessa; meus olhos brilham confusos. Eu vivo, há meses, só de promessas. Ele me beija. Me pergunto quando é que vou criar resistência ao alcool, esse maldito. Velocidade demais nesse mundo estranho; um piscar de olhos e já passa das três da manhã. Meia hora e nada; eu apelo, mas "todos os nossos atendentes estão ocupados". Ele me diz que é tarde e que precisa ir. Penso em coisas aleatórias; tédio; maldigo o provedor de internet até sua oitava geração. Eu desejo um tempo que não passe, um lugar que não exista. Por breves segundos fico sem entender minha frustração e minha ansiedade. Não dá pra ter. Depois amaldiçoo, mais uma vez, toda a tecnologia. O adeus é lacônico; saudade antes da partida. Procuro ver as coisas por outro ângulo, mas há apenas um ângulo que me interessa. Tudo perfeito demais; horas em segundos, dias em minutos, semanas em suspiros mudos e falta de ar. Séculos depois, milênios talvez, desisto e ligo a televisão. Difícil definir se é realidade ou fantasia. Passa a novela. Parece novela.

domingo, agosto 28, 2011

Utopia

Essa espera, meu bem, me corrói. Acabo sendo, o tempo todo, ansiedade disfarçada em desapego. E há esse medo frágil de que tudo acabe assim, mais uma vez, sem nunca ter sido, de que me reste apenas tua imagem borrada, fosca, o som inconstante dos teus passos se afastando.

Já são dois meses e nada me veio de ti. Ainda assim, espero. Já te disse que vivo de esperar. Mas tenho pressa.

Tenho pressa pelo que eu fui, pelo que tu fostes. E tenho pressa pelo que somos agora. Meu novo corte de cabelo, a nova cor do meu esmalte, minha última descoberta literária, a tinta fresca do quadro na minha sala de estar. Essas coisas todas sobre mim que tu ainda não sabes. E as coisas sobre mim que nem eu mesma sei. Tu és incógnita, tanto quanto.

Posso apostar que tens pressa também.

Eu tento entender teu atraso, tua demora. E a verdade é que eu consigo. Sei dos teus percalços, tão iguais aos meus. Sei de tua agenda lotada, de tua preguiça, das culpas todas que te atribuem, como fazem comigo, das noites em claro buscando soluções para problemas alheios. Compartilhamos dessa fuga forçada do que seria ideal em nome do todo insondável que não nos pertence.

Ainda assim, me permito devaneios. Desejo qualquer coisa que possa te trazer pra mais perto de mim, me levar pra mais perto de ti, anular essas distâncias inventadas, manhãs solitárias, tardes vazias, noites ébrias...

Os raios de um sol invisível refletindo em teus cabelos loiros e me cegando. Costuma ser assim, nos sonhos. Tua cabeça cheia de diamantes, teus dedos longos em gestos incompreensíveis, tua voz sem movimento me dizendo que ainda é cedo, pra eu me acalmar, que o tempo passa devagar e rápido demais.

Destas noites em que durmo, fica esse tanto de coisas que tu dizes e que parece não fazer sentido. Das noites de insônia, fica teu silêncio. Do que é real, fica um gosto ruim de ironia. E sempre essa saudade estranha, esse desejo mudo...

É tudo o que há.

quarta-feira, julho 06, 2011

Caio

"(...) Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais - por que ir em frente? Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia – qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido. Eu prefiro viver a ilusão do quase, quando estou "quase" certa que desistindo naquele momento vou levar comigo uma coisa bonita. Quando eu "quase" tenho certeza que insistir naquilo vai me fazer sofrer, que insistir em algo ou alguém pode não terminar da melhor maneira, que pode não ser do jeito que eu queria que fosse, eu jogo tudo pro alto, sem arrependimentos futuros! Eu prefiro viver com a incerteza de poder ter dado certo, do que com a certeza de ter acabado em dor (...)".

sexta-feira, julho 01, 2011

Exortação aos Crocodilos

Ele, de novo, e real. Não houve, contudo, qualquer intenção. Puro acaso. Não fosse a briga de dois senhores aleatórios, interesses escusos, a política, o problema dos fumilcutores e minha paciência para discursos intermináveis, talvez nunca nos tivéssemos reencontrado.

Como se as ausências não tivessem estado presentes durante todos esses anos, comentamos sobre o sol e sobre a chuva e sobre a vida nos fins de mundo em que vivemos.

Essas cidades aqui são só ladeiras. Acordo todos os dias às seis, desço uma ladeira a caminho do trabalho. Trabalho. Subo a mesma ladeira a caminho desse lugar, quatro paredes e pouco espaço, que alguns chamam de "minha casa" e eu chamo de "solitária" (ainda que eu tenha a vantagem de ver, pela única janela do único cômodo, o sol nascendo quadrado nesses dias frios).

Pra ele, a culpa que lhe atribuem por todos os problemas do mundo, um certo tédio escondido, e a moça, tímida, disfarçada em uma entrelinha.

Naquele momento, de fato, nada importava. O modo como ele me disse que era bom me ver, a mocinha do almoxarifado da Assembléia nos emprestando uma caneta, minhas mãos trêmulas anotando no canto de uma bula de remédio um número de telefone, um vice-versa em um pedaço de papel amassado.

E, depois, a promessa de que ele ligaria, cumprida, dessa vez. E notícias chegando pelo correio mais tarde, falando do tempo que a gente modela, dos tropeços da vida e dos vinhos argentinos e chilenos que salvam outonos.

Demorei a responder e, faz já um mês, a tréplica ainda não veio. Me acalma, contudo, a quase certeza de que as correspondências não irão mais se extraviar. Se encerra um ciclo. Pode ser que nada mais me venha, mas é boa a sensação de dar fim a uma agonia e de perceber que o real é melhor do que o imaginado.

De fato, nunca houve dor. Apenas aquilo que sempre vinha ao longo do tempo, saudades de eloquências informais, de vida inteligente, da "medicina indicada". Meu talento para dramatizar supera qualquer capacidade de criação que, dizem por aí, eu tenha ou possa ter.

Foi, até agora, apenas isso. Dramatização. O que será, daqui para frente... Incógnita irrelevante no meio de tantas outras.

Muito estranhamente, torço para que Antonio Lobo Antunes morra logo.

...

sexta-feira, março 25, 2011

Caio

"Foi numa dessas manhãs sem sol que percebi o quanto já estava dentro do que não suspeitava. E a tal ponto que tive a certeza súbita que não conseguiria mais sair. Não sabia até que ponto isso seria bom ou mau — mas de qualquer forma não conseguia definir o que se fez quando comecei a perceber as lembranças espatifadas pelo quarto. Não que houvesse fotografias ou qualquer coisa de muito concreto — certamente havia o concreto em algumas roupas, uma escova de dentes, alguns discos, um livro: as miudezas se amontoavam pelos cantos. Mas o que marcava e pesava mais era o intangível."

segunda-feira, março 14, 2011

Gerônimo

Tosse, tosse. Os batimentos cardíacos sendo sentidos na garganta. Visão turva. Uma dor latejante na parte de trás da cabeça. Cigarro. O silêncio do papel queimando em câmera lenta. A tragada profunda dilacerando a faringe, a laringe e tudo o mais que há. Chá. Tosse. Água. Mais um cigarro. As veias roxas. Comprimidos do tamanho de bolas de gude. Olhos fundos, cabelos sujos e despenteados. Música. Mais tosse. E outro cigarro. Pequenos canivetes perfurando o caminho todo até o pulmão. Bosch, o jardim, as delícias. Os gritos mudos ecoando pelos quatro cantos do quarto sem janelas. Saudades do gato. Tosse e cigarro. Pequenos pesos imaginários arqueando-lhe as costas. Insistência masoquista. O gosto de nicotina nos lábios rachados de frio e ansiedade. A tosse em uma mão e o cigarro na outra e não há um segundo sequer de dúvida. O cheiro de fósforo sorrindo amarelo, sarcástico, ensurdecendo-lhe os dedos manchados. Os olhos fechados, a falta de ar, um desejo infantil. Que fosse impulso, que fosse fácil, que fosse simples. Simples como tosse e cigarro.

sábado, fevereiro 26, 2011

No sábado

Bebeu tanto quanto pôde e escreveu cinco ou seis linhas em um guardanapo de papel. Depois chorou e adormeceu. Quando acordou, rodeado por garrafas de rum barato, leu e releu, mais e mais uma vez, tentando entender. Embora a caligrafia ébria fosse quase indecifrável, a letra era sua. Além do mais, exceto pelo gato, estava sozinho desde a quinta-feira. Sabia que era ele que havia escrito, mas não reconhecia aquilo tudo como seu. Pela primeira vez, espectador de si mesmo, percebeu que havia um certo encanto em seus desvarios, que a moça de vermelho era sincera e que as coisas todas podiam vir a ser. Tomou um banho, escovou os dentes, penteou os cabelos, vestiu sua melhor roupa, colocou Nina Simone pra tocar e escreveu-lhe dizendo que estava pronto e que esperava que ela viesse tirar dele as satisfações que merecia.

Par de dois

Há todo um esquema. Você me ignora. Eu insisto. Tudo depende de quem tem mais resistência. Você não admite: se eu ceder, você perde; se você ceder, ganhamos os dois. Você não cede. Nem eu. Give up, baby. Eu continuarei insistindo, indefinidamente, daqui até o infinito. Não me importa quanto tempo dure... Nesse jogo, eu quero empate.

sexta-feira, fevereiro 25, 2011

Caio

"Talvez tudo, talvez nada. Porque era cedo demais e nunca tarde."

De mim, nos outros...

"Music has always been a matter of energy to me, a question of fuel. Sentimental people call it inspiration, but what they really mean is fuel. I have always needed fuel. I am a serious consumer. On some nights I still believe that a car with the gas needle on empty can run about fifty more miles if you have the right music very loud on the radio."

Hunter Thompson: Kingdom of Fear - Loathsome Secrets of a Star-crossed Child in the Final Days of the American Century

quarta-feira, fevereiro 23, 2011

''Why do these eyes of mine cry?''

Que me pergunto se será sempre assim. Que temo que seja. Que vivo e sonho e oscilo constantemente. Que, às vezes, tenho a certeza de que as coisas, como são, não fazem sentido e, em outras, encontro sentido nas coisas como elas são. Que ele não se esforça. Que eu estou cansada. Que tu não és real. Que é mentira e é verdade. Que é sempre muito mais ou muito menos. Que é tarde e sinto sono, mas é impossível dormir. Que penso em ti. E que eu não sei, não sei... É o que eu te diria, se me restasse voz.

sábado, fevereiro 19, 2011

Correspondência Extraviada XII

R.,

Espero sentada sob a sombra de uma árvore na tua, na nossa, praça. O tempo passa e anoitece. Vejo ao longe a brasa do que suponho ser teu cigarro. Levanto-me. De certo modo, tudo me lembra o dia em que me contaste sobre a parede caiada, a boina verde-musgo do guarda e teu último palito de fósforo.

Desta vez são os teus passos que demoram. Os minutos se arrastam e tu não chegas. Por sorte, há o álcool e não sinto frio. Ensaio as palavras, esperando que o próximo círculo de fogo no horizonte traga junto teu corpo esguio, tua barba amarela, teu sorriso tímido... Mas tudo o que há são lembranças.

Chamas demais entre nós... E, longe de mim, vives dia após dia a única mentira que te permitiste contar, embora saibas toda a verdade. Os olhos dela não brilham, meu bem. Vivem, sim, fora do corpo que a carrega. O brilho que às vezes vês vem dos teus olhos. Tu sabes que ela nunca entendeu as perguntas e tampouco tem as respostas.

Ela é delicada. "Eu poderia rebentar-lhe a face apenas com um impulso da minha mão direita" e sem a ajuda de meus anéis. Não o faço e não é por pena ou por medo. É que ficou tão tarde... As luzes dos prédios ao redor da praça estão todas apagadas. Já não faz mais sentido lutar.

Tu não virás esta noite. Amanhã, talvez. Não desistirei de esperar. Não por ter esperança, mas por não ter nada mais, nada além. E porque sei. Sei de todas as coisas que não contaste a ela e não contaste a mim, mas que eu fui capaz de deduzir e ela não. Sei do cheiro de nicotina impregnado em tua pele, o cheiro que ela não pode suportar, mas eu posso. Sei que, embora admire, ela não entende, como eu entendo, tua poesia e teu torpor.

Nossa mania de contar os dias riscando as paredes com giz. Nossa insônia. Os "colchões cheirando a mofo", os "lençóis rotos". O jazz. Odessa. DFW, Hopper, Kieslowski, je t'aime tant. Espero, pacientemente, admitindo o inadmissível: "é ridículo, mas acaba sendo amor."

...

sexta-feira, fevereiro 11, 2011

Ao vento

Matando-me aos poucos e eu nem sei porque é que te ouço. Como se a idade pudesse te ensinar mais do que me ensinaram os tantos anos de estrada e dor. Tu não sabes nada da vida, querido. Talvez por isso teus conselhos sejam tão cheios de inveja e rancor. Alertas te escapam da boca como palavrões, tuas mãos inquietas invariavelmente denunciam tua ignorância, teu desespero e, sem querer, incitam meu desapego.

Mal sabes que a imagem é sempre ilusão e que é preciso muito mais do que teu ar de superioridade e um punhado de frases feitas para que o nada se torne real. E nem sempre acontece... É quase certo que irás acordar ferido pelos espinhos das rosas que carregavas no sonho. Mas ela, ela, não estará lá.

Pra ti, bem sei, não importa se é ou não real... Ela, perfeita em teu sonho, tua fantasia. Submissa, indefesa, infeliz. E o brilho dos teus olhos trazendo esperança e conforto. Teu corpo esguio, teu cavalo branco, teus longos cabelos ao vento, como em um conto de fadas.

Open your eyes e nada mais faz sentido. Deste lado tu és frágil, pequeno... Resignado, percebe que a realidade vai muito mais além e que sequer chega perto. Revolta.

Eu sei. Ver-me bem e maior te corrói como um câncer. Mascarando tuas pseudo-maldades com um sorriso tu me beijas a mão e espera que eu compre teu veneno ácido como se fosse mel. Faço-me de tola e te pago em moedas, por mais caro que seja. Eu nunca hesito, interpretar é o meu papel.

Mas há todo um futuro lá fora, meu bem, e eu não posso perder tempo. Estou indo buscar o que é meu. Ignoro teus sonhos, tua insegurança, teu desejo inconsciente por menos, teu medo disfarçado em sinais de preocupação e cuidado... E sinto pena. Tu deverias saber que as coisas mudam e que justamente quando tudo parece igual ao que sempre foi é que tudo está diferente como nunca.

Tu bem sabes, somos incompatíveis. Porque minha loucura é bipolar e vai além do teu desejo normalista, além dos teus gestos de censura não direcionada, da tua anarquia sem propósito... Teus discursos burocráticos não podem me frear.

Eu quero mais, quem diria. Menos, às vezes... Quero mensagens subliminares escondidas em despretensiosos beijos de despedida. Quero a declaração implícita de amor ou ódio. Quero um sarcasmo inocente, quase infantil, que me faça perder a voz. Quero a sinceridade que me tira do sério, do rumo. Quero um tanto de alegria e um tanto de desgraça...

Só não quero o meio-termo, qualquer corpo em cima de qualquer muro, o lugar comum.

Então, poupa-me. Guarda pra ti tua sanidade e me deixa arriscar. Ainda que desta vez eu não saiba se é cedo demais pra ir em frente ou tarde demais pra desistir.

sábado, fevereiro 05, 2011

Talvez?

Não quero fazer sentido. Ainda que quisesse, bebi o suficiente para não conseguir. De qualquer forma, não me preocupa. Nada me preocupa.

Essa coisa que me fez voltar, escancarar minhas fórmulas secretas. Evil. Páginas de passado guardadas na gaveta. Me confunde perceber que nada mudou, que escondo algumas palavras mas acabo sempre expondo a essência de toda essa loucura. E é tudo sempre igual.

Um pouco tonta, erro o teclado. Sorte a minha ser sempre possível apagar o que não deve ser escrito, embora não seja possível desdizer o que não deveria ter sido dito.

Pequena, é como me sinto, embora seja grande. Frágil como um monstro gigante desprotegido. E louca. Pelas coisas que desejo, pelos medos que não tenho. Às vezes acho a vida cômica demais e trágica de menos. Talvez porque seja mais fácil dar um passo à frente quando te faltam opções. Se tudo, ou quase tudo, e todos, ou quase todos, deixassem de existir...

Eu sempre arrisquei. É só quando você começa a envelhecer que vê que é hora de parar. Eu sei, eu sei, meus vinte e poucos não são tantos... Mas me parecem muitos. E embora nada seja o que parece, eu vivo de batalhas imaginárias. E meu lado pessimista sempre vence.

O que me perturba, e justifica toda a falta de sentido, é essa sensação estranha de que me faria bem viver de novo uma história que já vivi, embora não possa dizer como, quando ou onde... Essas premissas sobrenaturais desafiando meu ceticismo.

Não me canso de dizer que nada adianta. Tento me convencer e quase consigo. Mas acabo sempre perdendo tempo em divagações.

A verdade é que é tudo muito mais simples ou muito mais complicado do que eu sou capaz de imaginar... E o sentido das coisas depende do ponto de vista do observador. Eu observo e me infiltro e, tarde demais, percebo, desapontada, que já faz tempo... E que agora, ironicamente, talvez seja tarde demais pra voltar atrás.

quarta-feira, fevereiro 02, 2011

2011

Te dizer que tem sido uma merda. Olho o relógio digital na tela do computador, os segundos regridem. Como se fogos no céu houvessem causado um incêndio. A casa queimada, as fotos queimadas, nossos esconderijos, nosso medo, nosso torpor... Tudo queimado. O disco travado na mesma música. "Is a loosing game". Eu minto. Minto para Luana e para Maria, minto para Eduardo, minto. Engano ninguém, bem sei, mas é mais fácil assim. Prefiro conviver com as caras de dúvida e preocupação do que ter que me submeter a conselhos e consolos que confortam mas não curam. Tudo aleatório agora, mil coisas. "Why do I wish I never played?" Eu deveria usar pijamas, só pra ter a sensação de não sair deles durante o dia todo em plena segunda-feira. Tudo diferente e não se sabe quando foi que mudou. Os fogos, os fogos. Algumas coisas, porém, continuam igualmente boas, mas talvez apenas porque não sejam, não existam. Não se sabe. "Oh, what a mess we made". Ela, ela, ela. Ela faz falta demais e isso dói e eu quase penso em entrar na loucura e ir embora de vez. Trocar de marca de cigarro me dá dores de cabeça ou ao menos justifica minhas dores de cabeça inexplicáveis. Amanhã testarei um paraguaio que há de me deixar rouca também e terei explicação para a voz que me falta. Preciso ainda de algo que me justifique os dedos tortos das mãos voltando a expressar coisas obscuras. Ou não. De um jeito ou de outro, você entra em casa e espera encontrar. A planta viva, o gato alimentado, a cama feita, o teto do banheiro descascando, a louça suja na pia, as marcas de pés nas paredes. De um jeito ou de outro. Eu não deveria ter voltado. Nothing "is more that I could stand". Engraçado que tenha sido hoje. Não. Trágico. Tragicômico, logo hoje, logo hoje. Eu sou o ponto de interrogação desenhado sobre a cabeça de Jack. A felicidade consiste em poder desistir de tudo o que não aliena. Não leia, não ouça, não pense. Liberdade é poder não sentir. Não sinta, não sinta, não sinta. "Memories mar my mind". Eu caminho para o abismo e estou longe de tudo. Da verdade, do sorriso, do que existe em comum e não teve chance de existir, do soco inglês que ele usava como fivela, dos pedaços de banana que ele dava aos cachorros, dos bilhetes espalhados pela casa, do sonho adolescente, do teatrinho que ele fazia com os dedos dos pés, dos pombos da praça, do abismo em si, de tudo. Ficou por perto só esse não saber, insegurança, esse sentir que se anula porque não tem contraponto, essa certeza cruel. Ainda é quarta-feira e o sábado só chega daqui a trinta dias. Te dizer que tem sido uma merda.

sexta-feira, setembro 17, 2010

"I am Jack's rejection complex"

Ela chegou em uma tarde de domingo, carregando uns cinco ou seis sacos de batatas, porque ele havia lhe dito que gostava de batatas e porque ela, coincidentemente ou não, também gostava.

Foi ficando por ali, na casa dele, porque ele permitiu que ela ficasse, movido pela curiosidade, pela gula irracional e por uma inexplicável afeição pela moça das batatas.

Os dois passavam os dias cuidando das batatas, lavando-as, descascando-as, fatiando-as, ralando-as. Fizeram quichês de batatas, purês de batatas, sopas de batatas, batatas fritas, batatas assadas, batatas gratinadas, batatas sauté, espetinho de batatas, batatas recheadas, saladas de batatas...

Um dia, subitamente, sem dizer palavra, ele deu a entender que estava cansado de comer batatas e que queria que ela fosse embora.

Ela, então, colocou nas costas o último saco de batatas que havia sobrado. E foi.

sábado, setembro 11, 2010

De mim, nos outros...

"Marla... the little scratch on the roof of your mouth that would heal if only you could stop tonguing it, but you can't."

Chuck Palahniuk: Fight Club

sexta-feira, setembro 10, 2010

Fragmentos de cadernetas IV

Carregando o peso de um tudo nas costas.

"A fé remove montanhas, mas com dinamite é mais rápido". O caminhão carrega porcos e o cheiro é insuportável. Ele é lento. Quando a gente ultrapassa eu faço sinal com o braço e o motorista sorri e buzina. Ele não liga pro cheiro dos porcos. Ele sorri e buzina.

Dá pra dizer que eu estou acostumada. Mas quando pesa demais, eu sento e escrevo. E bebo uma cerveja. E fumo um cigarro. Eu sou dependente dessas circunstâncias, sou sim. De certa forma, isso tudo clarifica, me faz ver direito o que parece ser invisível.

Todo dia você descobre coisas novas. É bom ir de carona pra poder apreciar a estrada. O verde ressecado pelo sol contrastando com a fumaça das fábricas. No volante você perde tudo isso. Olhos fixos nas placas indicativas, nas luzes de freio na sua frente, nas possibilidades de ultrapassagem, nos buracos do asfalto que arrebentam rodas.

E eu não tenho conserto, não quero conserto. Eu quero pra sempre poder continuar dependendo da nicotina, do álcool e desses meus dedos tortos pra aliviar esse peso estranho, tentando transformar o que eu não entendo em algo belo.

A parte mais bonita da viagem é Campo do Tenente. Gosto de olhar as planícies sem fim, os pastos. O sol está sempre se pondo quando a gente passa por Campo do Tenente e é um espetáculo lindo, que eu me sinto privilegiada por poder assistir tantas vezes. Gosto do nome da cidade também, embora eu não saiba exatamente o porquê.

Porque nenhuma outra receita funcionou comigo. Como Caio, eu já li tudo, já tentei tudo (macrobiótica psicanálise drogas acupuntura yoga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé ecologia), menos boate gay e suicídio. Da mesma forma, sobrou só esse nó no peito e não há nada pra se fazer.

Acidente com morte hoje e ficamos uma hora paradas em um engarrafamento de curiosos. O ser humano é mórbido, não é? A gente achou que o acidente bloqueava a pista, mas não. Um carro capotou no acostamento, a perna do motorista esmagada pela lataria de um passat alemão, os pedaços do carona espalhados na grama. A gente também passou a dez por hora pra apreciar melhor o sofrimento alheio.

Então, lentamente, eu despejo pensamentos aleatórios no papel e o peso vai se aliviando. Eu concluo algumas coisas com pouca importância, outras importantes demais. Mas fica sempre uma sensação de que nada importa, de fato, de que o mundo vale cada vez menos a pena, de que a vida é uma sucessão de erros e não tem porque ficar insistindo em recomeços. Tentar cicatrizar ferida exposta se ferindo de novo é burrice, bobagem, ilusão. Só machuca mais.

É ruim quando atrasa. Eu e ela gostamos de chegar cedo e aproveitar a noite. Como é sexta-feira a gente não reclamou tanto porque as noites de sexta-feira são sempre mais longas.

Escrevendo, bebendo e fumando. Um blues também cai bem. É um exercício eterno. Eu gostaria de me convencer de que não é preciso carregar, gostaria de abandonar o fardo pelo caminho. Eu sei que é isso que eu deveria fazer mas, às vezes, a esperança é inevitável, a sensação de que vale a pena carregar o peso até que ele se torne leve. Eu sempre estou errada.

Eu disse a ela que era melhor a gente pegar o Contorno Sul por causa do horário. Ela preferia ir por Mandirituba, mas seguiu meu conselho. Foi péssimo. Mais uma hora paradas no trânsito de sexta-feira e dois encontros sendo cancelados. Mas ela riu. O bom de viajar com ela é que ela tem esse senso de humor único e é um tanto quanto louca. A loucura é essencial.

Eu tenho essas vozes na minha cabeça. "O amor é para idiotas. O máximo que você pode ter é companhia. No final, o príncipe encantado vai sempre se resumir a beijos de bom dia e frases feitas sendo repetidas sem vontade. Não existe nada além disso, meu bem, nada." (In)Sensatez? É uma pena que talvez seja mesmo assim.

A noite é uma sequência de luzes vermelhas que dariam uma bela foto, mas minha câmera quebrou. Ela se cansou de alternar os pés nos pedais e me pediu pra dirigir. Eu concordei, embora deteste não poder correr.

Eu queria que fosse mais rápido, mais fácil. Dói demais carregar esse peso. Eu quase desisto. Quase largo o fardo no caminho pra tentar viver como se ele nunca tivesse existido. O pior é saber que não dá. Se eu largo hoje, amanhã volto e busco, jogo nos ombros de novo e volto pro papel, pra cerveja e pro cigarro. Eu preciso aliviar a pressão e definir o meu rumo, de uma vez por todas.

Enfim, a chegada. Os olhos vermelhos, o corpo dolorido. Descansar até a próxima semana.

Mas se a gente não chega a lugar algum, uma hora a gente tem que parar e deixar tudo pra depois.

Qualquer viagem, por melhor ou pior que seja, sempre acaba. Eu amo a estrada, o percurso. O final é sempre triste. Mas na semana que vem, ou no mês que vem, ou no ano que vem, ou daqui uma década, você tem que começar a trilhar o caminho todo de novo e vai ter que chegar em algum lugar, do qual provavelmente terá que voltar depois. Não dá pra não pensar que é tudo em vão, embora seja válido. Eu estou cansada. Queria mesmo era poder parar pra sempre em algum destino bom. Queria nunca mais ter que carregar pesos como esses que agora me arqueiam as costas.

quarta-feira, setembro 08, 2010

Caio

"(...) deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, (...)."

domingo, setembro 05, 2010

About me

I'm 27 years old. Sometimes I feel like if I was 80. Some other times, like just 5. Right now, 15 is a good number.

I'm ponctual and I hate delays. I hate some laws and some habits. I hate someone, intentionally or not, telling me what to do. I hate the sound of the chalk on a blackboard. I hate my feet. I hate TV (not the shows, but the device). I hate telephone. I hate pills, but I need it. I hate the fact that life doesn't have a soundtrack. I hate monothematic people. I hate people with no sense of humor. I hate people. I hate sundays and mondays. I hate so many things but I never wondered about why and some people tell me that I'm a pointless hater. It's true, probably. Right now, I hate this fact and I hate even more the fact that some of my best friends are out of town, because I really need them today. That I can hate in peace, no needs of explanation.

I love some things, too. I love cats and dogs. I love the winter, the wind and the rain. I love september. I love my family. I love chocolate and strawberry. I love beer. I really love martini. I love jokes and irony. I love travel, more the road than the arrival. I love learning languages. I love driving, but I never got a car. I love art. I love comic books and all the other kinds of books, sci-fi movies, zombie movies and all the other kinds of movies. I love good music. I do not have unchangeable parameters for what is good. I love fridays. I love people (yeah, I contradict myself often). I love being alive. I love Caio Fernando Abreu and David Foster Wallace. I love the Davids, Fincher and Lynch and I love Charlie Kaufman. I love Billie Holiday and Nina Simone. The list goes on and on... I love so many things. I love more than I hate. Maybe I'm a pointless lover too, but I don't care. I love the fact that you love some of the things that I love and I love this glow in your eyes.

I was born and raised in Curitiba, so I am a cold person, not a cool one. I am totally systematic, insane about organization, and all my things have their own spot. The first thing I notice about any person is the hands and, after that, the shoes. I like your hands and I like your shoes. I drink about ten bottles of water per day. I don't believe in God. I'm learning french by myself. I'm thinking about get back to theater class. I'm a crap singer but I like to sing and some people like to hear. I laugh at myself, a lot. I like to play poker online. I cook very well, but I'm lazy. I have a serious rejection complex. I have problems to say no and troubles to sleep. I am a incurable postponer. My hands get wet when I am nervous and I can feel my heart. It is a funny thing: feeling your heart. You always know that it is there, but feeling it is another story. Right now, I'm feeling my heart, although not as much as yesterday.

I never travelled for out of the country. I never broke a bone, I never needed surgery, but I sure had my share of stitches. I never defied gravity. I never won the lottery. Nobody never wrote me a song. I played "I never" once and got drunk. I never thought that I'd meet somebody like you. I always keep secrets. I always cry my heart out when I watch drama movies. I'm always ready to drink a beer, or twelve. I already planted a tree and wrote a book. I already quitted smoking and got back to it, twice. I already ate a meal good enough to be my last.

I fear the death. I don't know how to deal with death, at all. I have this room in my place, where the cat, Jeremias, used to sleep. The cat died, two years ago, but I still refer to the room as Jeje's room. I fear the other's death and my own, too. Specially when I realize that I will not have time to do all the things that I wanna do, know all the places that I wanna know, meet all the people that I wanna meet, read all the books that I wanna read, watch all the movies that I wanna watch... I fear the scientists and their predictions of the world's end in 2012. I have this really crazy fear of cockroaches (just the word creeps me out). I fear hate and I fear love. I fear the "looking back" moment thirty, forty years from now. I fear you sometimes. I fear the fact that I don't know what I want and I will probably end up with a lot I don't.

But the things that I hate, the things that I love, what I'm, what I fear... All these things can change. I'm always changing. And I'm always confused, honey. About everything. Even about the things that I'm supposed to know for sure. Right now, I guess I know, but I'm afraid to be wrong. And I'm afraid, even more or a little less, to be right. In either ways, I don't know what to do... And that's all.

terça-feira, agosto 31, 2010

Caio

-Você tem um cigarro?
-Estou tentando parar de fumar.
-Eu também, mas queria ter uma coisa nas mãos agora.
-Você tem uma coisa nas mãos agora.
-Eu?
-Eu.

sexta-feira, agosto 27, 2010

Desatenção

- Oi, você vem sempre aqui?
- Na verdade, não, é a primeira vez. Sabe como é, né? É meio longe do centro.
- Hum... Qual o seu nome?
- ...
- Hey! Qual o seu nome?
- ...
- O que foi, garota?
- Nada não. Só to tentando entender porque diabos eu respondi a sua pergunta.

domingo, agosto 22, 2010

De mim, nos outros...

"Como, diabos, pode um homem gostar de ser acordado às 6h30 da manhã por um despertador, sair da cama, vestir-se, alimentar-se a força, cagar, mijar, escovar os dentes e os cabelos, enfrentar o tráfego para chegar a lugar onde essencialmente o que fará é encher de dinheiro os bolsos de outro sujeito e ainda por cima ser obrigado a mostrar gratidão por receber essa oportunidade?"

Charles Bukowski

sexta-feira, julho 30, 2010

Correspondência Extraviada XI

R.,

Um pouco, somente um pouco. Um pouco no brilho dos teus olhos, na tua barba espessa, nas tuas mãos geladas. Um pouco nas histórias que tu contavas, nos elogios que me fazias, no teu riso contido. Um pouco na nossa afinidade, no desconcerto e na eletricidade de nossas conversas...

Outro pouco, então, nas coisas que eu não sei de ti e que tu não sabes de mim, nos quadradinhos de petit-pavé das calçadas. Um pouco nos livros de Cortázar e DFW que me escaparam das mãos naquela tarde imaginária em que tu estavas lá, na voz melodiosa de Nina Simone, no dedilhado calmo de Charles Mingus...

Um pouco quase muito nas tuas respostas mudas, nas minha perguntas vãs, no tempo que corre e que não passa, na fumaça proibida dos meus cigarros, na minha memória apagada, no que sobrou de ti, nas alopatias que me trazem o sono...

O resto, quase todo ele, um pouco em cada outubro, nas coisas que não fizemos, na tua ausência não consentida, nesse mosaico sem sentido que se formou com a tua partida sem volta. Um tanto imenso, por fim, em todas estas cartas e nessa saudade bandida...

De mim, baby, do pouco em pouco que foi ficando, sobrou quase nada.

...

segunda-feira, julho 26, 2010

Caio

"O que quero dizer é justamente o que estou dizendo. Não estou com pena de mim. Tá tudo bem. Tenho tomado banho, cortado as unhas, escovado os dentes, bebido leite. Meu coração continua batendo – taquicárdico, como sempre. Dá licença, Bob Dylan: it’s all right man, I’m just bleeding. Tá limpo. Sem ironias. Sem engano. Amanhã, depois, acontece de novo, não fecho nada, não fechamos nada, continuamos vivos e atrás da felicidade, a próxima vez vai ser ainda quem sabe mais celestial que desta, mais infernal também, pode ser, deixa pintar."

terça-feira, junho 15, 2010

Na livraria...

Nossa! Oi! Sim, sim, tudo indo, tranquilo, e com você? Que bom, que bom. Não. Sei lá. Já que você tocou no assunto... Sério, porque é que você não vem mais aqui? Ah... Vai começar com isso de novo. Quer saber? Eu não me importo. Nem vou perder meu tempo ouvindo suas desculpas eloquentes. Boba. Eu sou boba? Não, não, você é que é, baby. Aliás, nem bobo você é, mas eu não quero descer o nível da conversa. Nem queira saber. Não insiste porque se eu falar o que eu tenho pra falar você não vai gostar nem um pouco. É mesmo? Ok, então. A verdade é que você nunca fez parte de nada. Você foi uma mentira que eu me contei pra ter a frágil sensação de que a vida era, de algum jeito, diferente, divertida. Não que ela não seja. Mas na tua época... É isso, baby, você passou da época, caiu do pé e apodreceu no chão... O que eu ia dizendo? Ah, sim, não que a vida não seja divertida, mas na tua época eu era bem menina e queria me aventurar, ir além. Tem também o fato de que histórias como a nossa eram moda e eu me preocupava em estar "na moda", se é que você me entende. Sim, sim, eu sei que eu sempre fui do contra. É isso! Calma... O nosso tipo de história era moda. O que eu queria era fazer dar certo porque histórias como a nossa nunca davam certo. Eu queria ter um lance meio maluco pra contar pros amigos anos depois, quando a gente já tivesse casado e com filhos e tudo mais... Agora eu não quero, mas naquela época eu queria. Eu queria tanta coisa naquela época. Eu sonhava em entrar na igreja de véu e grinalda com você. Não, não com você, eu sonhava em entrar na igreja de véu e grinalda. Você nunca esteve lá, nos meus sonhos.... Ah, porque você sempre foi... Como é mesmo que a Nina diz? Ah, sim, uma falácia! Você sempre foi uma falácia. Enfim. E eu queria ter filhos naquela época. Eu demorei pra perceber que isso é uma tremenda estupidez. Não, não é porque eu não posso, eu acho estupidez, sim. Vem cá, você vai me deixar terminar de dizer o que eu quero dizer? Ok. Então, eu queria ter uma história pra contar pros amigos e queria que eles dissessem "Nossa! Sério? Foi assim que vocês se conheceram?" e contassem que nunca tinham ouvido falar de uma história como a nossa com final feliz. É. Eu queria ser diferente, só isso! Agora eu sei que isso era besta e tudo mais. A verdade é que na primeira vez que eu te vi... Não, deixa quieto, também não quero te ofender. Ai, esquece... Eu ia só dizer que, bom, você é inteligente e tudo, mas... Ah, esquece, sério. Presta atenção! Minha crueldade tem limite. É mesmo? Novidade. Bom, to me lixando, baby. Agora eu tenho pena de você, porque você seguiu aquele único caminho que existe pra gente limitada que nem você. Isso me dá muita pena. De você com seu trabalho burocrático e engravatado que te paga mal e da sua esposa gorda, dona de casa, cujo único sonho é engravidar e ganhar uma geladeira nova. E você é tão incompetente... Você é tão limitado que não é nem capaz de ganhar dinheiro suficiente pra comprar a geladeira nova que ela te pede todo santo dia, a coitada. Nem vou falar do resto... Eu to muito bem, sim. To indo em frente, pelo menos, não parei no tempo. E daí que eu to sozinha e não to fazendo nada do que eu gostaria? Olha, baby, a minha vida é uma merda mesmo, mas pelo menos eu tenho futuro, pelo menos eu vou sair dessa. Você não, você tá amarrado nessa sua vidinha miserável e cheia de responsabilidades. É por isso, né? É por isso que você não vem mais aqui. As suas responsabilidades. Não te cobro mais nada, prometo. A vida já tá mesmo te cobrando muito. Ok, pode ir, tchau. Já está mesmo na hora de fechar e eu ainda preciso finalizar aquele relatório que a Nina pediu. Não, não promete nada... Cara, eu te disse tanta coisa. Você não se ofende? Não, cala a boca, não quero ouvir. Volta lá pro teu trabalho burocrático e pra tua mulher gorda. Tenta, pelo menos, comprar a porcaria da geladeira pra ela. Sim, sim, amigos. Te desejo tudo de bom. Mesmo. Se afasta que eu preciso fechar a porta. Até. Tchau.

terça-feira, junho 08, 2010

Caio

"Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais exatamente pela dor que provocou, e para sempre perdeu-se no momento em que cessou de doer, embora lateje louca nos dias de chuva."

segunda-feira, maio 31, 2010

Caio

"Na primeira noite, ele sonhou que o navio começara a afundar. As pessoas corriam desorientadas de um lado para outro no tombadilho, sem lhe dar atenção. Finalmente conseguiu segurar o braço de um marinheiro e disse que não sabia nadar. O marinheiro olhou bem para ele antes de responder, sacudindo os ombros: "Ou você aprende ou morre". Acordou quando a água chegava a seus tornozelos.

Na segunda noite, ele sonhou que o navio continuava afundando. As pessoas corriam de outro para um lado, e depois o braço, e depois o olhar, o marinheiro repetindo que ou ele aprendia a nadar ou morria. Quando a água alcançava quase a sua cintura, ele pensou que talvez pudesse aprender a nadar. Mas acordou antes de descobrir.

Na terceira noite, o navio afundou."

segunda-feira, maio 24, 2010

De mim, nos outros...

"Me contradigo? Pois bem, me contradigo. Sou vasto, contenho multidões."

Walt Whitman

Sobre Lost

Só valeu o ingresso pela primeira cena da primeira temporada e pela última cena da última. Aliás, poderia ter sido só isso: o olho do Jack abrindo, seis temporadas de tela preta, o olho do Jack fechando.

O importante é saber que "everyone dies sometime, kiddo"!
Blé!

segunda-feira, maio 03, 2010

A véspera

Ele, na véspera, a chave errante no buraco da fechadura, entrando em casa afoito, como que louco para deixar a rua, o barulho da rua, o movimento da rua, que o persegue entre as paredes do apartamento no quinto andar, mas com menos intensidade, mais distante. Ele, sem saber porque o alvoroço da rua o deixa tão aflito, sem saber nem mesmo se o que o deixa aflito é o alvoroço da rua ou a semi calma do lar destruído, as paredes manchadas, os tacos de madeira esfarelando sob os pés, as caixas da mudança ainda amontoadas no quarto do gato, a pia cheia de louça, a cafeteira cheirando a mofo, toda a estrutura da sua vida ruindo em meio a móveis de grife, almofadas novas e lençóis de cetim. Ele acendendo um cigarro e impregnando com nicotina a barba espessa e amarela, observando, por longos minutos, o rumo da fumaça ao vazio, abrindo uma garrafa de cerveja com os dentes, "quase nunca pra comemorar, quase sempre pra esquecer". Ele, aflito, se perguntando quantos copos serão necessários dessa vez, repetindo a si mesmo que está ficando tarde, que não dará tempo, questionando suas escolhas, tentando fingir que de nada se arrepende. Ele, olhando-se no espelho, a pele pálida, as rugas no canto da boca, os cabelos caindo, o corpo fora de forma. Ele, procurando em Cortazár ou Wallace citações para expressar isso que ele não sabe se é só cansaço, ou se é angústia ou se é mesmo um desespero ou se é... Ele, maldizendo as reticências e a falta de certeza. Ele, entre Charles Mingus e Billie Holiday, optando pela segunda, incoscientemente obrigando-se a pensar na moça de cabelos vermelhos, unhas vermelhas, roupa vermelha, mas que ele só é capaz de enxergar em preto e branco. Ele, sentindo saudades do que apenas poderia ter sido. Ele, os cigarros, a cerveja, Cortázar, Wallace, Billie Holiday, escrevendo sobre o que ela, a moça, talvez possa estar fazendo hoje, na véspera, lamentando o desacerto, o desencontro, o desapego, se perguntando se é ela o que falta para tudo fazer sentido ou se tudo, nada, nunca fará sentido.

Máxima suicida

Você percebe que a sua vida não vale mais a pena quando a segunda-feira passa a ser o dia mais esperado da semana e, mesmo assim, é um dia de merda.

domingo, abril 25, 2010

Caio

"Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte."

segunda-feira, abril 12, 2010

Needles and pins

Do nosso tempo eu perdi a conta. Sei, devido à noção que meu rosto no espelho me dá, que são vários, longos anos. Mas parece mesmo que são só alguns meses, às vezes parece até que foi ainda ontem.

Eu só tenho lembranças bestas de ti, moço, e isso é bom. É como se sempre tivéssemos sido leves. Tanto naquelas longas noites quanto naqueles poucos dias. Sempre fomos leves.

De fato, não nos aprofundamos. Nunca. Mas estivemos o tempo todo à beira do abismo. Meu medo de pular, tua insistência para que eu me jogasse de uma vez por todas. A distância, os planos. Acho que nunca te disse que a culpa foi toda dos meus planos. Sequer te contei quais eram meus planos. Eu tinha uma impressão borrada de que tu não entederias e a minha revelação definiria o quanto éramos diferentes e impossíveis um para o outro. Hoje admito que fui fraca. As dúvidas de antes não me freariam agora que freiam a ti. Nesses dias frios como o de hoje, sinto uma vontade tardia de finalmente me jogar, mas no lugar do abismo há agora uma muralha.

Depois de ti, moço, segui incontáveis caminhos errados, tu bem sabes. Sorte a minha que não sou de me arrepender, mas lamento um pouco. Lamento menos quando observo de longe a tua vida. Talvez o medo de pular fosse um sinal. Eu não me encaixo no teu mundo ideal, jamais me encaixaria. Mas talvez teu ideal de mundo fosse diferente se eu houvesse cedido ao teu apelo. E isso me confunde e me atormenta um pouco.

Pode ser que em alguma outra dimensão estejamos juntos, levando uma vida quase perfeita. Eu seguindo meus planos antigos e tu deixando tuas raízes pelo caminho para me acompanhar nos comboios da vida.

A ironia é que nesta dimensão eu acabei abandonando tudo que nos separava, que nos tornava diferente um do outro. Nesta dimensão, tu agora és um tanto quanto itinerante e eu vou ficando por aqui mesmo, presa a uma porção de coisas que detesto, esquecendo aos poucos o conceito de liberdade.

Enfim, não sei bem ao certo porque comecei aqui esse compêndio de melancolias. O que eu queria dizer é que nesses dias frios como o de hoje, sinto sua falta. Sinto falta de esquentar meus pés com as tuas meias e dos pratos enormes de sopa ou qualquer outra coisa que tu sempre me trazias, por nunca saber o tamanho da minha fome. Lembranças bestas. Leves. Só isso.